Ainda, não há muitos anos, certamente que menos de dez, agosto era o mês em que nada acontecia. Podíamos ir de férias e ignorar as notícias, existia um compromisso tácito de estrelas e galáxias para que golpes de Estado e revoluções ficassem em suspenso.
Tudo o que era humano ia a banhos. Só nos agitávamos um pouco com a trágica e triste inevitabilidade dos incêndios e das placas tectónicas a chocarem umas com as outras em algum ponto do globo. "Silly season", dizíamos.
O mundo mudou, mas mudou mais rapidamente do que julgávamos ser possível. É agosto, uma parte substancial do país está de férias, mas agora há surpresas todos os dias e "golpadas" todas as semanas. O calor não é suficiente para nos desligarmos por completo e a crónica de hoje reflete essa minha preocupação, assumo que não totalmente consciente, de não aligeirar esta "conversa" semanal que nos vai aproximando.
Tenho recordado os anos de liceu em que estudava as cantigas de escárnio e maldizer opostas às de amigo e de amor. Se atualizássemos conceitos adaptando-os aos dias de hoje é bem possível que sobressaísse uma espécie de cantiga de ódio, uma vez que o nosso tempo parece caracterizar-se por um estranhíssimo e requintado gosto pelo odioso e por um ressentimento bem menos sofisticado do que a poética medieval.
Há um lugar onde a silly season não esmorece. As revistas de coração continuam a destacar casais felizes e por satisfazer, famílias esplendorosas e em queda, folhetins que nos distraem daquilo que nos pesa. No meio de tanta gravidade não deixa de ser refrescante, confesso. E há sempre questionários que acompanham as "passadeiras vermelhas", perguntas de bolso como o clássico "se apenas pudesse levar um livro para uma ilha deserta, qual seria a sua escolha"?
Imaginando que me perguntavam, arrisco uma resposta: a "República", de Platão. Naquelas páginas vivem há séculos os temas da vida e da condição humana. Pela "alegoria da linha dividida", diálogo imaginário de Sócrates com uma divindade, percebemos o que precisamos. Sem esta "República" teria sido difícil que Shakespeare escrevesse as suas tragédias. Por esta alegoria explicam-se também, sem necessidade de muitas mais fontes, as contrariedades, a barbárie, as emoções e a necessidade de mediatismo para conquistar objetivos e ser um vencedor neste nosso "Big Brother" de que ninguém quer sair
Platão distinguia opinião de conhecimento. A opinião era o senso comum. O conhecimento, o raciocínio fundado. O mundo está a mudar os seus alicerces, as elites estão a ser destruídas, muitas vezes autodestroem-se, e uma nova vanguarda ganha influência e conquista espaço. É um poder que ameaça ser futuro e que alicerça o discurso numa relação íntima com o senso comum, logo numa aversão ao conhecimento. O seu castelo, o reduto em que cresceram, foi feito, pedra após pedra, nas redes sociais entre facebooks e instagrans que acabaram por dominar por falta de comparência das elites.
Na próxima semana, a partir de Platão, tentarei refletir sobre as razões para o crescimento de uma cultura de ódio que se está a enraizar e a minar a fortíssima e secular identidade portuguesa do saber do coração em que o todo inclui mesmo toda a humanidade. É urgente substituir o sistema binário (eu e tu/ amigo e inimigo) que é tão redutor pela noção de multitude, na qual cabe um panteísmo acolhe de antepassados e vindouros.
Como povo do Encontro que se deu ao mar -, não podemos esquecer que no Novo Mundo não obrigámos os povos do Encontro a servir-nos de luvas, e muito menos brancas. Em regra, comíamos das mãos desnudadas daqueles com que nos relacionámos sem nojo ou ódio apenas com a gratidão da partilha pelo Encontro e talvez por essa razão fizemos filhos, muitos filhos quase nunca os abandonados. Como povo somos um caso único, somos mais felizes nos trópicos do que na terra que nos viu nascer. Soubemos como poucos conjugar as artes da guerra e do acolhimento. Quando Afonso Henriques conquistou a cidade de Lisboa, em vez da habitual chacina pré-anunciada deslocou os mouros para mouraria, os negros para a negraria (hoje S. Paulo) e os judeus para Judiaria. E todos passaram com regras a conviver em paz
Os vencedores na guerra - ao contrário dos políticos-, são sempre magnânimos perante os vencidos.
Presidente da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Torres Vedras
manuel.guerreiro@ccamtv.pt
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